O ponteiro no relógio já havia completado ¼ da corrida voraz número a número e Júlia persistia parada frente ao portão de ferro com soldas galvanizadas. A mãozinha frouxa junto à da tia. Não era Juju e seus teimosos cinco aninhos que protelava o passo seguinte que a faria adentrar no presídio: era a tia. A menina só queria um sorvete naquele mormaço ao passo que as gotículas de suor se formavam e escorriam pelo rosto, fato este que ela observava pelo cantinho do olho, ficando vesga por três segundos. Ivone queria rever o ex-marido, exorcizar crenças e inconstâncias.
Em 3 dias o (ex)marido e mais dois estariam mortos. E com o fim da corrente que ainda o prendia nas mazelas cá na terra dos homens ele não mais iria prodigalizar com constante desagrado sobre o ocorrido. A história toda viraria pó, como o folhetim que noticiara o fato, como o corpo que jazia enterrado sabe-se lá em qual buraco.
O calcanhar girou. O caminho de volta pra casa fora tão silencioso quanto o ar abafado que entrava pela janela do carro e percorria cada parte do rosto ainda suado das duas, em lufadas. Ivone voltaria lá ainda no mesmo dia, e se soubesse que de lá iria sair com amarras na boca e a lâmina fria do estilete pendendo próximo a jugular – próximo até demais – não teria ido. Mas do homem não se sabe o futuro e nem se tem a certeza de muita coisa.
Juju desenhava com giz grená, mas o olhinho cismava em olhar o televisor que os pais assistiam atônitos. Olha, o lugar que estivera mais cedo!
Na manhã seguinte a manchete do jornal. Uma fotografia imensa da rebelião, suja, deturpada por qualquer falsa ideologia, manipulada, duplamente suja pela tinta que batia rápido no jornal, TEC TEC TEC.
A mãe a deixara na escola, e ela levara o jornal na mochila. Voava alto no balanço quando parou e sentou para colorir a impressão feroz. Coloriu com força, quebrou um giz. Parecia tão diminuta frente ao que ocorria naquela cena. Não era como seus desenhos de colorir... alguns dos homens usavam umas roupas tão engraçadas, umas curtas demais e rasgadas. Sua mãe nunca a deixava usar um vestido rasgado! Alguns esboçavam os dentes e a saliva saltava em gotas, no que poderia ser um riso exacerbado ou um grito em flecha. Para Juju, era uma gargalhada. Aquelas armas eram como as da cavalaria?
E ela pintou margaridas nas cabeças dos presos. E vasos de água pendiam. Ela lembrava como lá era quente, e enxugou o cabelo dos mesmos. Colocou ternos em alguns. Rabiscou gatos e tigres e ratos entre todos e um balão subia ligeiro. Nunca tinha visto cena similar! Os amigos engravatados do papai naquelas reuniões de fumacê não eram tão divertidos (mas talvez no âmago não fossem tão diferentes...).
O sinal já havia telintado habilmente e todas as demais criancinhas com suas fantasias pré-fabricadas haviam adentrado na escola se esbarrando entre as portas. Aos cinco anos o morrer se resolve com um beijo ou um balde d’água, e sonhos são ininterruptos; o mundo é azul-celeste. A menina voltou ao balanço. Foi alto. A grama estava úmida, e ela sentiu isso com os pés e com o corpo quando se lançou ao ar e tombou eufórica. Sentiu de novo o rosto molhado, porém não era como na manhã anterior. Ela estava sozinha ali. Sozinha e com medo. O coraçãozinho bateu rápido. Queria tanto estar de volta ao prédio que estivera no dia anterior, lá sim estava segura, com os homens-coloridos lhe protegendo.
Balançou a cabeça por alguns segundos. Não havia porque pensar naquilo. Que bobinha! Entrou correndo e deixou os homens-coloridos com suas roupas engraçadas se divertindo sozinhos na grama e no desenho da caixa de concreto e grades. Ávidos.
16 comentários:
adorei o blog e o texto!
parabéns.
http://vinteeagora.blogspot.com/
vc esreve muito bem! sucesso pra vc
Que estranho você fazer medicina, tem muito jeito para a escrita! Gostei das escolhas lexicais do texto, parabéns!
Muito obrigada, continuarei a ler seus textos também, são muito bem feitos!
Acho muito legal quando as pessoas conseguem fazer mais de uma coisa, é muito normal ver estereótipos de gente que só gostam de uma área e desprezam as outras... muito bom seu pensamento!
Mtuu legal seu blog, parabenss!!
Um texto muito bem escrito.. Abraço e sorte!!
A inocência das crianças é linda...
Infelizmente um dia a verdade vem a tona e nesse dia a inocência deixa de existir...
Adorei o seu texto!
Tem que ter mta sensibilidade para escrever algo do tipo!
Parabens!
Mt legal hehe,vou lhe seguir
trollagemvirtual.blogspot.com
O que muitos adultos desprezariam , uma criança se alegrou, ficou feliz, se sentiu protegida, gostei muito da forma inscente que você usou, da para relembrar como funcionava nossas cabeças quando eramos crianças. Só fico triste quando começo a comparalas .
Tem um selo pra vc em meu blog da um olhadinha la .
poetaurbanoo.blogspot.com
Medicina deve ser muito complicado mesmo, ter aulas super puxadas dia e noite não deve ser mole. Tinha percebido sim que você ficou dois anos sem postar nada quando fui olhar os outros textos... mas é assim mesmo, imaginei os seus motivos. É bom que agora tenha vontado a escrever, espero que continue mesmo com a volta das aulas pois seus textos são ótimos.
No meu caso, faço Letras, então consigo aproveitar a universidade para praticar a escrita, hehe. Devemos ter mais ou menos a mesma idade, pois também prestei vestibular em 2009 e iniciei a universidade em 2010. :)
Estou impressionada.
Muito bom mesmo, o teu texto exprime de forma tão delicada, algo tão complexo.
Amei o blog.
beijão
E cá estou eu comentando de novo... Ou seja, o texto é muito bom, muito! Esbocei uma lágrima aqui e sofri lendo, parece que tinha um peso nos meus ombros e eu tinha que te contar isso! Parece que eu sofri junto, senti junto, escrevi junto! Ah, e de sentir nós sabemos... Vi o comentário da Alana Driziê e acho que nós, estudantes de medicina metidos a escritores, temos esse diferencial de saber do sentir e dos sentidos, tentamos... Tu consegues, parabéns! Tô me sentindo "orgulhosa" pq tenho vocês, calourinhos, como pequenos filhos =~~ Ai, vou parar, tá vendo pq não comento muito?! Só falo besteira e não sei o que dizer e sempre acho que parece menos do que eu queria dizer =~~
Cada texto seu me faz imaginar a situação, eu 'viajo' em cada crônica, parabéns por mais LINDO. E não pare de escrever não porque eu vou estar sempre aqui para tentar aprender com seus textos!
tenho mais um lá também.. rsrs..
tudo bom ae?
Uou, uou, uou. Gostei demais daqui. E adoro essa música aqui de cima. Ler teus textos foi o meu milésimo gol sentada na frente do computador!
Favoritei e assim que o blogger voltar a funcionar, quero linkar no meu, posso?
Abraços e vê se não para de escrever por mais 2 anos nem que decida, sei lá, virar cirurgião cardiotoráxico!
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