A construção mantinha sua resistência tentando inutilmente fazer do solo um peito afável, cismando em não submergir no buraco que nos últimos 14 anos tentava engolir tudo como um oceano de piche. Agora tudo cedia. No momento em que toda aquela estrutura que outrora de tão modesta dissimulava a quantidade de enredos que eram tecidos em seus cômodos e fundos fosse ao chão, levaria com ela um punhado das lembranças. Talvez até mais, mutilando as memórias, fazendo as perturbações morais ruírem.
A antiga casa de ourives. Brigada anciã de uma família de pai, mãe e filhos como é raro de se encontrar; dessas que não levava consigo divórcios e amantes fora da cama e que fazia o sinal de nome-do-Pai sempre que passava frente a uma igreja.
Parece-te natural – na verdade um tanto ambrosíaco – visitar tal lugar, não? Engana-te.
O que dali era lembrança suave, acalentava. O que era fel parecia corroer.
A chave rodou com um estampido quando as lingüetas destrancaram a porta da entrada. Por baixo de todas as teias e pó, ainda era a mesma casa. Sua casa. Nos fundos, com saída para a rua paralela, a loja onde recebera encomendas dos plêiades e dos chulos morais da cidade. Anéis de graduação, anéis de casamento, abotoaduras...
Cada aresta da casa tinha um pouco dos filhos. E um pouco dela. Os homens que ele hoje ainda chamava por diminutivos cresceram ali. Os homens que hoje lhe davam netos.
Ela entrou ali com o rosto fumegante de qualquer recém-casada, um sorriso cadenciado com os olhos. Queria tê-la visto saindo dali da mesma maneira: com 20 anos. Mesmo com a morte galgando seu feitio pouco à pouco, e os 60 não sendo a mais tenra das idades (tampouco sendo a mais ardilosa) aquela italiana preservou cravado em seu corpo miúdo o que nem mesmo o tempo poderia levar. Rugas e mazelas não tomaram consigo aquele sorriso e aqueles olhos.
O senhor andou por cada cômodo com a certeza de que precisava rever tudo aquilo. Nem mesmo a memória de um moço segurava as lembranças com a clareza de quando se concretizavam, quem dirá a de um velhote! Talvez nem mesmo fosse tão forte para agüentar aquele turbilhão de emoções. Talvez fosse exatamente isso que ele almejara: que seu corpo não agüentasse a visita.
Manhã. Tarde. Noite. O corpo agüentou.
Despediu-se ao cruzar a porta na direção contrária a que entrou. Na mão idosa que segurava a bengala, no anelar direito, o anel de ouro e prata fulgurava impetuoso. Até onde a lembrança – quase demente – vislumbrava, fora um dos últimos feitos. Fora uma obra-prima, e como se o espírito daquela belladona tivesse colocado ponderosamente sua alma cobiçosa no ouro e o enigma de seu corpo na prata. Enquanto aquele anel valsasse em seu dedo, ela estaria com ele em aconchego. Siameses de espírito.