Era noite, e foi por acidente, resultante não somente da desorganização daquele quarto, mas da falta de coordenação motora do dono do quarto, que agora acreditava no que ouvia quando tinha lá pelos seus 12 anos: “Quando você for adolescente, vai ter a impressão de que seus braços e pernas são
enormes, mas isso é apenas uma
ilusão, já que você vai crescer muito rápido...olha só como você já cresceu!”. Nem mesmo ele sabia o que procurava, estava ligado a tudo, e nada. Quando por acidente, repito, ele tocou na superfície daquele espelho e ela começou a se movimentar, foi o escape perfeito que sua mente precisava pra se desligar, puxar o cabo da tomada. E as ondas continuaram, suaves e contínuas, como as formadas por uma pedra atirada que rompe a calmaria de um lago. Tocou-as, e o líquido, imiscível à primeira vista, pareceu aderir em seus dedos. E os dedos, primeiro o indicador, atento, depois todos os outros quatro... A mão, o braço, transpuseram tal mar de fantasia. Quando dizem que em situações surreais a mente fica isolada do mundo ao redor, ele achou ser a mais pura verdade, pois não pensava nos livros que podiam ser tão parecidos, não pensava que podia ali encontrar Alice, que viveu aventura semelhante na obra de Lewis Carroll, não pensava em nada, droga, nada.
Ora, ele estava agora no Mundo dos Espelhos? Mundo dos alucinógenos? No Limbo, ou algo assim? Riu. Riu consigo mesmo, riu pelo mundo, riu da cara de todos os escritores que tentaram em vão imaginar como seria uma experiência assim, e ele agora, ali. Tomou nota mentalmente: do outro lado do espelho não há um mundo mágico, não habitam pequenos seres mágicos, nem mesmo é um lugar bonito! Tudo era vago, um falso vácuo. Uma grande esfera cinzenta e oca. Só não acreditava ter ido parar em algo semelhante ao hiper-espaço pelo fato de ter conseguido ouvir sua própria voz quando gritou um OLÁ, ainda entre risos. E quando tais risos cessaram, ele sentiu medo. Um calafrio. Sibilou em pensamento quão agonizante seria ficar preso ali, ouvindo a própria voz em ecos infinitos, até ir à loucura, até ficar demente. E, não obstante ao medo que já sentia pela situação real que parecia exalar perigo, assustou-se com o irreal, que já não era tão distante, já que naquele lugar ele não se surpreenderia se começasse a ouvir o rugido de um leão...mas não, ele REALMENTE estava ouvindo o rugido de um leão! E antes que o susto lhe disparasse o coração e fizesse saltar as têmporas, ele viu, como que se saindo de dentro dele, o espectro de um leão, amarelo-alaranjado e onipotente. Tombou, antes que visse marcadas no couro do animal, em letras marrons e, por incrível que pareça (se é que algo ainda podia tornar-se mais inimaginável...), em negrito, a palavra CORAGEM. Numa fração de segundos, do mesmo modo que o leão pareceu sair de ser corpo, materializou-se à poucos metros uma lebre com a palavra MEDO, que fugia assustada em sua direção, e do mesmo modo, entrou em seu corpo.
Pirou, essa é a palavra. Pirou o cabeção. Pensamentos à mil: vida, morte, conhecidos, canções, religião, caráter, sol, início e fim...e num momento haviam dezenas de animais com um ar calmo, quase humano, vindo e saindo de sua direção. Sentia-se esperto, e uma vistosa raposa grifada com letras garrafais de ASTÚCIA entrou sorrateira em seu corpo, expulsando um lento caracol verde-musgo. E quando achou graça do conjunto, daquele alvoroço, foi a vez de uma foca com uma bola no nariz listrada com as letras de ALEGRIA aparecer (naquela cena, só a bola lhe pareceu fora do contexto). Choviam sentimentos naqueles segundos, minutos que se passavam. Quando achou-se no controle de novo, e sentiu-se anestesiado por tudo aquilo, achou que Darwin iria adorar ter visto o macaco da IRONIA, que fingia imitar um homem, sob as duas patas. Vai que Darwin também já esteve aqui antes de elaborar a Teoria da Evolucionista...
- Então é assim que o homem funciona - analisou. – Nada de hormônios que definem a TPM das mulheres, o estresse matinal masculino... é tudo um jogo, uma batalha teatral entre opostos, ligados. Tudo aparecia em pares polares. Norte-Sul, Leste-Oeste, Bonito e Feio. A coragem e o medo, a astúcia e a lentidão, a sagacidade e a mediocridade. Era tudo um grande YNG-YANG. Fez-se rei.
- E onde está a tua rainha? – Berrou uma coruja que lia um livro de bolso chamado RAZÃO. E foi como uma flecha (naquele mundo não havia cupidos, mas a persuasão emocional deles era ótima). Pensou nela, em uma só, uma musa. A sua musa. E não parou de pensar nela, naquela...até rimou um poema. Devia ser algum tipo de bônus daquele passeio: “Venha entediado, saia apaixonado”. A equipe de marketing devia ser realmente eficiente!
Então fez-se aparecer, imponente, um animal que até então estava desaparecido entre os outros. Uma grande ave, que fez os outros se calarem momentaneamente. Era o AMOR. E no rabo da ave, na ponta do rabo, pequenas letras formando ÓDIO. Não o ódio propriamente dito, dava pra julgar pelo tamanho minimizado do sentimento, mas o ódio passageiro, que como aquela pequena palavra diante do tamanho do pássaro, não é dominante, mas existe. É isso que as pessoas não entendem. Só de coragem morrem os corajosos, que se arriscam sem medir as conseqüências, e para isso aparece um pouco de medo em frente à algumas situações, servindo como um moderador. E algumas vezes o macaco da DIVERSÃO derruba o livro da RAZÃO da coruja, e faz mil graças. E os casais apaixonados brigam, sem perceber que aquele é o mais difícil dos jogos, um jogo de equilíbrio entre todas as sensações.
Puxado, saiu não sabe por onde, não se sabe por quê, ele voltou. Caiu de costas no carpete do quarto, limpo. Imutável. Pegou o celular, discou e deixou chamar 8 vezes. Era noite, ele se sentia poderoso. Podia dominar o mundo, podia imperar e ser humilde, e seus inimigos, olhando aquele personagem forte (quase mítico), não saberiam que calcanhar de Aquiles, inegavelmente, era do lado esquerdo do peito. Ele tinha que falar com ela, por isso tornou a discar o número
mais uma vez...
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Campeões, não me senti disposto a escrever algo que transdordasse mais sentimentalismo nesse dia.
Feliz dia dos Namorados, é uma ótima data. :*